Pagar dívidas: por que ordem? (parte 2: um exemplo prático)

Leram a parte 1 primeiro? Muito bem! 🙂

Vamos, então, inventar aqui um personagem fictício (e, não, antes que pensem, não sou eu com algumas alterações cosméticas; entre outras coisas, não estou a pagar a casa. (Além de que já mostrei as minhas próprias dívidas, infelizmente bem maiores (excepto a parte da casa), nos posts sobre a evolução mensal das dívidas.) Claro que haverá sempre uma ou outra coisa em comum; afinal, uma pessoa fala sempre com mais confiança do que conhece), cuja situação, parece-me, será familiar a muitos portugueses (possivelmente não, como disse na primeira parte, a maioria dos leitores/as actuais deste blog). Sendo um nome comum cá por Portugal, chamemos a esse personagem ““.

A história do Zé, infelizmente, é tudo menos inédita. Acabou os estudos, arranjou um emprego, foi até em geral subindo na carreira (com uns altos e baixos aqui e ali, mas isso é normal), mas no meio disso veio também uma vida com alguns excessos aqui e ali, competição com amigos e colegas, talvez algum casamento ou namoro de vários anos que não deu certo, e, no meio de tudo isso, cartões de crédito. Sempre os cartões de crédito. De tal forma que, finalmente, o Zé olhou para a sua vida em termos financeiros (ei, mais vale tarde que nunca), e apercebeu-se de que, apesar de até ganhar (tanto quanto sei) acima da média de Portugal, está neste momento a viver uma vida mais “pobre” do que tinha há uns 10 anos, quando ganhava menos. E apercebeu-se, também, da causa disso: mais de metade do seu ordenado vai só para pagar créditos e cartões de crédito. No caso dos cartões, para pagar o mínimo, ou pouco mais — o que faz com que essas dívidas, para todos os efeitos, praticamente não desçam.

Mas, pronto, o Zé “acordou para a vida”, identificou o problema, e decidiu resolvê-lo o mais rapidamente possível (já que neste momento esse problema “estraga-lhe” a vida toda; é como estar a tentar nadar, tendo pesos cada vez maiores agarrados ao corpo). Então, ele decidiu: OK, para começar vou ser frugal ao máximo, vou gastar só o mínimo para sobreviver, ir trabalhar, etc., sem ligar a questões tipo “nível de vida” ou “impressionar outros”. E vou usar o dinheiro a mais para me livrar dos créditos logo que possível.

Onde “atacar” primeiro, então? Para já, vamos olhar para a situação do Zé:

A ENTRAR:

Ordenado: 1500€ líquidos por mês;

A SAIR:

Casa: tem um crédito de 100.000€, a pagar 350€/mês durante 30 anos (dos quais já “só” faltam 25)

Cartões de crédito (todos mais ou menos no limite — sim, isto é normal 🙁 ):
– banco ABC: crédito de 2000€, TAN de 25%, pagamento mínimo de 3% (60€)
– banco DEF: crédito de 1000€, TAN de 15%, pagamento mínimo de 5% (50€)
– banco GHI: crédito de 1600€, TAN de 20%, pagamento mínimo de 5% (80€)

Crédito pessoal:
– entidade JKL, crédito a 6 anos de 16000€, TAN de 9.5%, pagamentos fixos de 300€, ainda só foram pagos 6 meses (pelo que ainda faltará pagar cerca de 15000€ — no início, os pagamentos são quase só para pagar os juros)

Daqui vemos que o Zé precisa de 840€ por mês só para pagar o mínimo dos seus vários créditos. Não espanta que ele cada vez se sinta mais “apertado”, não é? Ainda por cima, ao pagar somente o mínimo dos vários cartões, é revelado um novo problema: juros. Pois é, quais são os juros mensais dos vários cartões, assumindo que estão todos com as dívidas acima mencionadas?

Cartão ABC: 41.66€
Cartão DEG: 12.50€
Cartão GHI: 26.66€

Até podia ser bem pior, já que nenhum destes juros é superior ao pagamento mínimo (caso esse em que pagar só o mínimo faz a dívida aumentar). Mesmo assim, dá para ver que, pagando só esse mínimo, só uma pequena parte desse pagamento é usado para reduzir a dívida; a maior parte do mesmo vai apenas para pagar os juros. Por exemplo, pagando 60€ do cartão ABC, a dívida é reduzida em apenas (60-41.66) = 18.34€. Assumindo que ainda se usa o cartão para, por exemplo, almoçar fora uma vez ou duas, então nem sequer baixará nesse valor; ficará, para todos os efeitos, na mesma. Mas podem ter a certeza de que o banco não se importa mesmo nada de continuar a receber do Zé 41.66€ “grátis” todos os meses. 🙁

Pondo a coisa de outra forma: só em juros dos cartões de crédito, e assumindo que a situação se mantém (o que, até uma pessoa “acordar”, é comum durar anos), o Zé está a dar aproximadamente 970 por ano aos bancos, em juros. É mesmo a “dar”; não é dinheiro que ele possa usar para comprar alguma coisa para ele (já nem falo de poupar ou investir). É efectivamente como pegar fogo a notas. E foi tudo gradual: o Zé usou os cartões de crédito umas vezes para comprar coisas ou cobrir alguma emergência, viu que não tinha de pagar tudo na altura e que assim tinha naquele momento a conta bancária mais “à vontade”, habituou-se a pagar só perto do mínimo de cada um, e depois de uns tempos o Zé não só não tem mais poder de compra do que tinha (pelo contrário), mas passou também a ter um pagamento mensal adicional de uns 190€ — dos quais 80€ vão somente para os juros dos cartões.

Já é mau o suficiente, não é? Mas ainda pode piorar: por usar mais de metade do ordenado só para pagar créditos, e não tendo alterado muito o seu nível de vida, o que resta ao Zé depois de pagar os referidos créditos já não lhe chega para pagar contas, alimentação, transportes, entretenimento, etc., pelo que o Zé é “obrigado” a pagar, todos os meses, mais coisas com os cartões de crédito. Não muito, porque já estão todos no limite, mas pelo menos a diferença entre o pagamento mínimo que fez e o que foi para os juros mensais. Ou seja: as dívidas nunca descem, ponto. E só não sobem ainda mais por já estarem nos limites. 🙁

E isto sem sequer meter o crédito pessoal ao barulho. OK, compreendemos, talvez o Zé precisasse mesmo de um “alívio” naquela altura, talvez quisesse investir nalgum negócio, mas o que é certo é que entretanto esse dinheiro foi-se, mas a prestação mantém-se… E, sem se fazer nada, vai manter-se por mais uns anos.

Este post já vai um bocado longo, não é? Acho que estou a ficar tagarela com a idade. 🙂 Enfim… na parte 3 (que espero ser a última), vamos então ver qual será a forma mais rápida e eficiente de o Zé se livrar destas dívidas.

A seguir: parte 3: cartões de crédito.

2 comentários em “Pagar dívidas: por que ordem? (parte 2: um exemplo prático)”

  1. Este tipo de informação faz-me pensar em muita coisa. Principalmente no que não queria encontrar futuramente na minha vida.
    De certo pensarei muito bem se alguma vez me deparar com alguma necessidade monetária.
    À data de hoje, só penso em “endividar-me ” ao comprar casa, nada mais. Mas o futuro é incerto.

    1. Fico contente em ser útil. 🙂 Este post nem é super-detalhado, mas se alguém me tivesse dito/mostrado isto há 20 anos, a minha vida agora seria bem diferente (para melhor)…

      Já agora, acabei de inserir um parágrafo novo, sobre o facto de o Zé ter “necessidade” de usar os cartões todos os meses (até ao limite), visto não “ter” dinheiro que lhe chegue para o mês… por ter usado mais de metade do ordenado só para pagar dívidas. E, sim, já passei por isto durante muito tempo, no passado.

Responder